Como funcionam as coisas no mundo dos dirigentes de bancos centrais
Em julho, o presidente do Banco Central dos EUA, Ben Bernanke disse que percebeu no outono de 2008 que alguns bancos na Inglaterra estavam manipulando a Libor. Segundo Bernanke, ele chamou a atenção de Mervyn King, chefe do Banco da Inglaterra, para esse fato. Aparentemente, Mervyn King não fez nada, já que a manipulação continuou, mas Bernanke disse ao Congresso que não podia fazer mais do que isso. O artigo é de Dean Baker.
Dean Baker (*)
O caso da manipulação da taxa Libor é o escândalo que nunca termina. Revela muito sobre a conduta do Conselho da Reserva Federal dos Estados Unidos e dos bancos centrais de modo mais geral. No mês passado, o presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, testemunhou ante o Congresso e disse que percebeu no outono de 2008 que alguns bancos na Inglaterra estavam manipulando a Libor. Segundo Bernanke, ele chamou a atenção de Mervyn King, chefe do Banco da Inglaterra, para esse fato. Aparentemente, Mervyn King não fez nada, já que a manipulação continuou, mas Bernanke disse ao Congresso que não podia fazer mais do que isso.
As implicações da afirmação de Bernanke são incríveis. Há trilhões de dólares em empréstimos para automóveis, hipotecas e outras dívidas, nos EUA, vinculados à Libor. Também há imensos contratos de derivados cujo valor depende da Libor em um determinado momento. As pessoas ganhavam ou perdiam nessas transações não com base no mercado, mas sim dependendo da taxa manipulada da Libor, fixada pelos grandes bancos.
Bernanke tinha certamente a obrigação, como presidente da Reserva Federal, de denunciar e deter essa manipulação, que interferia com o funcionamento adequado dos mercados financeiros dos EUA e do mundo. Mas, Mervyn King não queria fazer nada, de modo que, o que poderia fazer Bernanke? É verdadeiramente incrível que Bernanke tenha feita uma declaração esta ante o Congresso e o público. Não poderia fazer nada diante da manipulação?
Suponhamos que tivesse dito ao chefe do Banco da Inglaterra que não
restava outra alternativa que deter a manipulação. Bernanke poderia ter dito que se King não tomasse imediatamente os passos necessários para terminar com a manipulação, ele convocaria uma coletiva de imprensa, na qual mostraria publicamente a evidência da manipulação e informaria sobre o fato de que King não havia tomado medidas a respeito.
É concebível que King ficasse indiferente a esta ameaça? Seguiria tolerando essa manipulação inclusive a custa de seu cargo e de ficar exposto à humilhação pública por não exercer suas responsabilidades junto ao povo do Reino Unido? Parece pouco provável. Por certo, proferir tal ameaça não seria cortês. Bernanke estaria dizendo a outro chefe de um banco central que não estava cumprindo sua tarefa e estava disposto a arruinar sua carreira a fim de obrigá-lo a agir responsavelmente. Aparentemente, Bernanke nunca considerou essa possibilidade.
Isso deveria enfurecer todo mundo. Qualquer relação pessoal que Bernanke tivesse com Mervyn King e outros chefes de bancos centrais deveria estar subordinada a sua responsabilidade de assegurar a integridade dos mercados financeiros dos EUA. Se isso exige que ele seja descortês com o chefe do Banco da Inglaterra, não resta dúvida que seu cargo determina que seja descortês com Mervyn King. Mas não é assim que se fazem as coisas no clube dos executivos de bancos centrais.
O escândalo da Libor não só mostra os efeitos negativos do compadrio no clube dos banqueiros. Bernanke comprometeu recentemente a Reserva Federal a obter uma taxa de inflação de 2%. A base para este objetivo é vista como o mandato para a Reserva Federal manter uma política de promoção de estabilidade dos preços. Certamente, essa é apenas a metade da tarefa do banco; a outra metade é manter uma política de promoção do pleno emprego.
Nenhum presidente anterior da Reserva Federal interpretou o compromisso com a estabilidade dos preços como se isso implicasse uma taxa específica de inflação. Assim, Bernanke deu um grande passo ao escolher como objetivo uma inflação de 2%. É algo muito importante porque poderia significar que a Reserva Federal não cumpriria a outra metade de seu mandato, o compromisso de manter o pleno emprego (e se pode dizer que é exatamente isso o que está fazendo agora), para conseguir seu objetivo de atingir 2% de inflação.
Por que Bernanle escolheria esse objetivo de uma inflação de 2%? Apesar de tudo, há pouca evidência de que taxas moderadas de inflação a um nível de 3%-4% causem algum dano importante à economia. Existem centenas de exemplos, inclusive nos EUA, nos quais as economias mantiveram um forte crescimento durante períodos prolongados com taxas de inflação de mais de 2%.
Certamente o objetivo de uma inflação de 2% veio de amigos de Bernanke em outros bancos centrais. Mervyn King anunciou um objetivo de uma inflação de 2% para o Banco da Inglaterra. O Banco Central Europeu (BCE) está legalmente comprometido com uma inflação de 2%.
Esse compromisso legal com uma inflação de 2% significou que, quando as bolhas imobiliárias chegava a níveis cada vez mais perigosos na Espanha, Irlanda e outros países da zona do eiró, o BCE simplesmente olhava para o outro lado. Em lugar de tomar alguma atitude para impedir o colapso que devastou a economia da eurozona, o BCE disse: “o que temos a ver com isso?”.
Parece que Bernanke quer que o banco central dos EUA adote a mesma atitude. Se as vidas de dezenas de milhões de pessoas são arruinadas pelo desemprego e/ou a perda de suas casas, Bernanke poderá seguir batendo nas costas de seus colegas porque cumpriu o objetivo de inflação de 2%. Assim funcionam as coisas no clube dos banqueiros centrais.
(*) Dean Baker é codiretor do Centro de Investigación Económica y Política (CEPR). É autor de Plunder and Blunder: The Rise and Fall of the Bubble Economy and False Profits: Recoverying From the Bubble Economy.
(*) Este artigo foi publicado originalmente na Al Jazeera. Tradução feita a partir da versão em espanhol publicada no Rebelión.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer – Carta Maior