Pergunta: A desindustrialização é inevitável frente às escolhas feitas pelo Brasil na condução da economia? (Valor)

 

Julio Bittencourt/Valor

A indústria global tem sofrido um profundo processo de mudança nas últimas décadas. Uma primeira tendência diz respeito ao intenso deslocamento da atividade industrial para alguns países em desenvolvimento, com destaque para o Leste asiático e a consolidação da China, como grande centro mundial produtor de manufaturas. A título de ilustração, os países em desenvolvimento (PED) já representam mais de um terço de toda a produção manufatureira mundial. A China sozinha responde por metade de toda a produção manufatureira realizada nos PED e, em termos globais, só é menor que a indústria manufatureira norte-americana. A maior participação dos PED na manufatura mundial não é um processo generalizado. Ao contrário, apenas 15 países concentram mais de 80% de toda produção manufatureira.

Uma segunda tendência observada é que o deslocamento da atividade industrial é acompanhado por um movimento acentuado de concentração nas principais cadeias industriais mundiais, com a consolidação de grandes corporações comandando um profundo processo de reorganização de suas atividades internacionais como forma de alavancar sua competitividade globalmente.

As duas tendências anteriores não devem ser entendidas como parte de um processo de desindustrialização global. A rigor, a perda de importância da indústria como vetor de crescimento econômico está circunscrita às economias avançadas, com destacada exceção da Alemanha. Nos países periféricos mais industrializados o produto industrial segue ampliando sua participação no PIB e se constitui no motor dinâmico do crescimento. Nesse caso, infelizmente, o Brasil tornou-se a principal exceção.

Nesse contexto tem havido forte crescimento dos fluxos globais de comércio de manufaturas (insumos, componentes, partes e peças e bens finais), que superou em muito a expansão da produção industrial, ampliando os coeficientes de importação e de exportação dos produtores e consumidores. Além das estratégias de internacionalização das corporações, visando a exploração e fortalecimento de seus ativos intangíveis, a intensidade e qualidade dos fluxos de comércio estão condicionadas pela capacidade de usufruir das vantagens competitivas relacionadas às capacitações infraestruturais, produtivas e tecnológicas dos países e aos fatores de custos (câmbio, tributos, mão de obra).

Em decorrência das tendências anteriores, os países em desenvolvimento ampliaram para 40% sua participação nas exportações mundiais de manufaturados. Cabe destacar que no período recente, o fluxo mais dinâmico de comércio internacional foi entre os PED, ou seja, PED exportando (importando) para (de) outro PED, superando a taxa de crescimento entre os países desenvolvidos e destes com os países em desenvolvimento. Os fluxos de comércio entre os PED aproximaram-se de US$ 2 trilhões.

Esse expressivo e dinâmico fluxo de comércio mostra outra importante mudança recente no cenário econômico mundial. Os PED têm ampliado seu protagonismo na economia global não apenas como produtores e exportadores de manufaturas para os consumidores nos países desenvolvidos, mas também se tornaram importantes mercados demandantes. A expansão da demanda mundial tornou-se cada vez mais dependente do crescimento do consumo e do investimento nas maiores economias emergentes, como China, Índia e Brasil. No caso específico da China, sua crescente inserção nas redes de produção internacionalizadas e no comércio mundial como maior exportadora de manufaturas e importadora de matérias-primas promoveu impactos importantes nas estruturas de produção e de comércio exterior dos países avançados e em desenvolvimento, como o Brasil.

Essas tendências de maior participação de países emergentes no produto industrial e no comércio internacional de manufaturas, bem como de mudanças qualitativas nas estruturas de produção e de comércio colocam desafios importantes para o desenvolvimento industrial brasileiro.

A Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido) avalia o desempenho competitivo industrial de mais de uma centena de países a partir da construção de uma série de indicadores de produção e comércio de manufaturas: a) o valor agregado manufatureiro (VAM) per capita; b) a participação do VAM no PIB; c) a participação do país no VAM global; d) a participação dos setores de média e alta intensidade tecnológica na estrutura da indústria manufatureira; e) as exportações de manufaturados per capita; f) a participação das exportações de manufaturados no total das exportações do país; g) a participação do país nas exportações de manufaturados globais; e h) a participação dos produtos de média e alta intensidade na pauta de exportação de manufaturados.

Tomando como base esses indicadores e o ranking de competitividade construído pela Unido, o desempenho da indústria brasileira foi bastante desfavorável no período recente. Os indicadores mais negativos dizem respeito às baixas e decrescentes participações do VAM no PIB e dos produtos de média e alta intensidade na pauta de exportação. Apesar do desempenho pífio da indústria brasileira nas últimas três décadas, o Brasil ainda se posiciona como a 11ª potência industrial, atrás de China, Índia e Taiwan, entre as economias emergentes; e à frente das avançadas como Canadá e Espanha.

A reversão desse quadro e a retomada do desenvolvimento industrial brasileiro passam fundamentalmente pela adoção de duas diretrizes estratégicas e articuladas. A primeira diz respeito ao estímulo da demanda doméstica por meio da expansão do consumo e do investimento. O consumo deverá ser beneficiado pela redução dos juros e melhoria (taxa e volume) das condições de crédito, bem como pelos efeitos multiplicadores sobre o emprego e a renda, permitindo a consolidação de um dinâmico mercado de consumo de massa. Esse movimento deverá ser acompanhado pela elevação da taxa geral de investimento na economia, hoje no baixo patamar de 19% do PIB, contra 44% observados na China. As oportunidades para um novo ciclo de investimentos estão dadas. O BNDES estima investimentos na modernização e ampliação da infraestrutura (telecomunicações, ferrovias, transporte rodoviário, portos, energia elétrica e saneamento) de R$ 100 bilhões ao ano para o próximo quadriênio. Esses investimentos têm o duplo papel de estimular o crescimento pela demanda e de gerar condições mais competitivas de oferta.

Também há expectativas de substantivos investimentos na construção civil pesada e residencial. Para a segunda fase do programa Minha Casa, Minha Vida são previstos investimentos da ordem de R$ 140 bilhões entre 2012-2014. Os investimentos industriais também deverão ser beneficiados pela expansão da produção e do consumo. Para a indústria, as estimativas de investimentos ultrapassam R$ 600 bilhões no período 2012-2015, com destaque para o setor de petróleo e gás, com investimentos de R$ 350 bilhões.

A segunda estratégia é assegurar que a crescente demanda por bens industriais (intermediários, duráveis, não duráveis e de capital) seja direcionada fundamentalmente para a produção doméstica e não para as importações, adensando a cadeia produtiva, ampliando a demanda intersetorial e gerando efeitos aceleradores via investimentos industriais. O incremento substantivo dos investimentos industriais será a ponte para o desenvolvimento de maiores capacitações produtivas (escalas) e tecnológicas da indústria brasileira.

A articulação da expansão da demanda doméstica com o estímulo à produção e ao investimento industrial pressupõe também uma maior coordenação da política de desenvolvimento industrial aos condicionantes macroeconômicos. As decisões mais recentes de política econômica parecem seguir na direção correta de desmontar a armadilha dos juros altos e câmbio valorizado. Entretanto, as condições de rentabilidade e de competitividade ainda são bastante desfavoráveis à indústria brasileira. Soma-se a isso um quadro de acirramento da competição e da competitividade internacionais promovido em grande medida pela estratégia agressiva de internacionalização comercial e produtiva chinesa. Portanto, o país não deve abrir mão no curto e médio prazos de sua estrutura de proteção ao mercado doméstico e de promover o aperfeiçoamento dos instrumentos de defesa comercial.

Fernando Sarti é diretor e professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia – NEIT e pesquisador da Rede Mercosul